sábado, 15 de novembro de 2008

Carta a D



"Se eu morrer agora, você retornará ao Rio de Janeiro?” Mal tínhamos acordado e minha mulher, após um beijo, traz à tona essa questão. Como se trata de uma quase filósofa e a morte é a grande inspiradora da filosofia a princípio tomei aquela indagação como provocação, ela sabe o estrago que me faz falar e pensar na morte, e também uma tentativa de filosofar. A questão precisava ser quase simplória devido às limitações do seu patético interlocutor. Fosse o que fosse, não teve êxito. O medo que o tema me causa, o medo da morte é inato, empurrou minhas mãos trêmulas ao controle remoto e logo liguei a TV em busca de uma bobagem qualquer. Ela não insistiu e eu num silêncio/trincheira inventado naquele instante lembrava do melancólico livro Carta a D., que tínhamos lido e debatido semanas antes, sob coincidentes emoções.

A morte não combina com nada, e quando confrontada com o amor a incompatibilidade se torna insuperável. Por ter experimentado de ambos meus medos se redobravam. Depois da pergunta de minha mulher me perseguiu por horas e horas uma frase de Carta a D. “Nós desejaríamos não sobreviver um a morte do outro”. Impactado com a frase concluí que deve ser essa a única maneira de um amor durar para sempre. Amor ou vontade de vida, conforme Schopenhauer. Mas “como construir esse para sempre?” Partindo da certeza do meu amor por minha mulher e das sensações incomparáveis que ela me causa, se tornava óbvio objetivar a continuidade do prazer. Sei que no frigir dos ovos somos todos egoístas e tudo que buscamos é com a intenção de que seja para sempre. Que o automóvel não enferruje, que o vaso jamais quebre, que as fotografias nunca se apaguem e aqueles que amamos estejam sempre a nossa disposição. Poucos admitem, mas a verdade é essa. Esse mundo não me interessa, o mundo da razão, razão que nos presenteou com a certeza da morte, me desagrada completamente. Por outro lado, me fascina o mundo da minha imaginação. Sua existência depende de mim, se tenho os planos é por que a construção é viável. Meu objetivo é trapacear, enganar a morte, desviá-la daqueles que eu quero bem, que na verdade guardam pedaços meus e caso morram, eu também morro. Se a fantasia não me impediu de sofrer pelo menos me fez entender que algumas coisas podem ser para sempre. E só pode ser pra sempre tudo aquilo que não exigir espaço. Mas o para sempre é algo que não surge livre da dor. Falo de meu grande amor que foi precedido da minha dor e solidão, frutos ácidos da autodepreciação e preguiça de acreditar na fantasia. A solidão é um artifício muito utilizado pelos covardes da minha laia. Nos escondemos, congelamos nossa afetividade e se não amamos não corremos o risco da rejeição, da perda, da frustração. E assim permitimos o tempo andar sobre nós. Até um dia... O dia em que percebemos que podemos permanecer assim para sempre. Sem dor, sem medo, imóveis. Como as pedras. A pedra escondida é a materialização do para sempre, pior, muito pior que estátua. Minha fantasia exigia movimento e eu não sabia, talvez por isso me doesse tanto estar parado. Pouco importando se frente ao mar ou deserto. Porém, em certo entardecer meu mundo começou a rodar no sentido oposto. Naquele instante eu vi a mulher que também me viu. Alguns dias se sucederam até revê-la e então trocamos algumas palavras, o suficiente para eu me dar conta que desde minha infância sonhava com uma mulher como aquela. Hoje o sonho é também meu despertar e quando sofro é simplesmente por que ela não está comigo. E como sofro!!!! Infelizmente o amor nunca é para sempre, visto que é vivo e tudo que é vivo precisa morrer. Não, eu não invejo o amor de Dorine e André, mesmo que o amor deles tenha durado para sempre.

Agora eu tenho a receita e posso responder a minha mulher: “Não, quando você morrer não voltarei ao Rio de Janeiro. Não irei a lugar algum. Pregarei na porta de nossa casa placa igual a de Gorz; Avisem a polícia” É isso. Não, eu não tenho 17 anos, tenho muito mais e não acredito em nada, nada mesmo que não seja produto da fantasia, do imaginado, do sonhado. Mas acreditar não basta, é preciso viver a realidade com fantasia. Amor ou vontade de vida. Em setembro de 2007 Dorine e Gorz suicidaram-se, cada um com sua respectiva injeção letal, a doença dela (aracnoidite) atrapalhava a vontade de vida do casal. Viveram juntos quase sessenta anos. Dorine sofria há vários anos de uma doença incurável, fruto de um erro médico - “você vai eliminar esse produto em dez dias” , anunciou o radiologista. Enganava-se, o líquido (lipiodol), utilizado para fazer contraste numa radiografia de coluna, alcançou o cérebro, Dorine sofria dores terríveis. Carta a D., escrito entre março e junho de 2006 com Dorine já doente, é uma carta de amor, é uma história de amor, é uma história sobre os sobressaltos do viver? É uma história sobre a literatura, sobre o silêncio? É tudo isso e mais: é também o mea-culpa, pedido de perdão, remorso de Gorz . Logo na abertura ele confessa: “Eu só preciso lhe dizer de novo essas coisas simples antes de abordar questões que não faz muito tempo têm me atormentado. Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida? Por que, em Le Traîte, passei umas falas imagem de você, que a desfigura? Esse livro deveria mostrar que a minha relação com você foi a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver. Por que, então, deixar de fora essa maravilhosa história de amor que nós tínhamos começado a viver sete anos antes? Em Le Traîte chega ao requinte de chamá-la de “coitadinha". Tem mais; Carta a D. também é o relato de uma tragédia provocada por um erro médico, enquanto isso a vida segue abusando das repetições, André e Dorine não suportaram, não importa se para os gatos ou para os médicos, ambos escondendo suas cagadas embaixo da terra. Falo com conhecimento de causa, já me pegaram duas vezes, fizeram uma vítima fatal. Carta a D. é uma pergunta; a pergunta que incomodava Gorz: “por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa e excluímos as demais?” A pergunta continua a espera da resposta. Gorz entendia que a filosofia não servia para explicar o amor. Abrir parênteses: quem leu Metafísica do Amor, de Schopenhauer, sabe que Gorz está com a razão. Fechar parênteses. O amor é o deslumbramento de uma pessoa pela outra, pelo que elas vêem e sentem de mais inexplicável. Amor implica em união, Dorine dizia: “Nós seremos o que fizermos juntos”. Gorz precisava de Dorine, me atenho a ele porque a carta é escrita por ele, deduzo que a recíproca tenha sido verdadeira. Dorine duvidava da aplicabilidade das teorias de Gorz, mas não negava-lhe o apoio fundamental. “Amar um escritor é amar que ele escreva , dizia você. “Então escreva!.” Gorz rebate: “Eu não posso me imaginar escrevendo se você não mais existir.” Não, sensível leitor, não se trata de auto-ajuda, é triste, é demasiado humano, pena que o humano ande tão fora de moda e o amor atualmente seja tratado como animal em extinção. Eu disse amor, note bem. Não confundir com atração física tão somente ou certos jogos de interesses que todos conhecemos muito bem e não saem da ordem do dia. O autor André Gorz, filósofo e jornalista (Les Temps Modernes e Le Nouvel Observateur) sofreu influência de Karl Marx e Jean Paul Sartre. O leitor atento pode confirmar com a leitura de “Estratégia Operária e Neocapitalismo”, “O Socialismo Dificil”, “Crítica da Divisão do Trabalho” e “Adeus ao Proletariado”. Filósofo importante, fez da ecologia um dos seus temas favoritos junto com o anticapitalismo que em dados momentos nos faz lembrar Theodor W. Adorno em suas críticas radicais à cultura atual onde o humano é preterido em nome de uma neo barbárie. Dorine, inglesa, nascida Doreen Leir, era uma atriz de teatro. Se encontraram na Suiça, dois anos depois estavam morando juntos. Dorine e André inventaram um amor e um mundo; o amor ainda hoje mantém contato com a realidade atual; o mundo de combate a doença no entanto e de alerta aos inevitáveis erros médicos não pode ser esquecido. Dorine e André já estavam mortos antes de suicidarem-se, o ato físico foi tão somente o ápice de uma morte espiritual que se deu com o avanço da doença de Dorine. André, porém, se manteve vigilante: “Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda a sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.”

Em Carta a D. André Gorz combina amor e sofrimento na medida exata, embora intensos, no entanto este resenhista ranheta não faz pouco caso das intenções do autor, discorda apenas do momento escolhido para tão significativa declaração. Bem, mas o suicídio dele foi a grande declaração de amor, você deve estar pensando, amoroso leitor. Para não me tornar ainda mais chato prefiro encarar Carta a D. como a última declaração de amor, nesse caso presumo a existência de inúmeras outras, próprias dos grandes amores. Gorz contraria Adorno, em Carta a D. o autor não desaparece na obra.



O AUTOR
André Gorz (Viena,1923 - Vosnon,2007), pseudônimo de Gerhard Horst, é autor de uma das reflexões mais importantes sobre o capitalismo e o mundo do trabalho no século XX. Com livros publicados em diversos países, foi um pioneiro na defesa da militância ecológica como uma política, tanto em sua obra teórica como eu seu trabalho na imprensa. Dedicou os últimos anos de vida a cuidar da doença da mulher, Dorine, período em que publicou uma série de ensaios de grande relevância, a começar por Adeus proletariado (1980) que marca o rompimento com o marxismo.


TRECHO
Vinte e três anos se passaram desde que fomos viver no campo. A princípio na “sua” casa, que liberava uma energia meditativa.Nós a saboreamos por apenas três anos. O canteiro de obras de uma central nuclear nos enxotou dela. Encontramos outra casa, bastante antiga, fresca no verão, quente no inverno, com um terreno enorme. Você poderia ter sido feliz ali, onde não havia nada além de uma campina, que você transformou num jardim de sebes e arbustos. Plantei duzentas árvores. Durante alguns anos, ainda viajamos um pouco, mas as vibrações e os solavancos dos meios de transporte, fossem quais fossem, causavam-lhe dores de cabeça e em todo o corpo. A aracnoidite a obrigou a abandonar, pouco a pouco, a maioria das suas atividades favoritas. Você consegue esconder os sofrimentos; nossos amigos sempre a acham “em plena forma”. Você não parou de me encorajar a escrever. Ao longo dos vinte e três anos passados na nossa casa, publiquei seis livros e centenas de artigos e entrevistas.Nós recebemos dezenas de visitantes vindos de todos os continentes, fui entrevistado dezenas de vezes. Eu certamente não estive à altura da resolução que tinha tomado havia trinta anos: a de viver o presente, atento mais que tudo à riqueza que é a nossa vida comum. Agora eu vivo de novo, e com um sentimento de urgência, os instantes em que tomei essa resolução. Não tenho nenhuma obra mais importante em elaboração. Não quero mais - segundo a fórmula de Georges Bataille - “deixar a existência para mais tarde”. Estou atento à sua presença como estive desde o início, e gostaria de fazê-la sentir isso. Você me deu toda sua vida e tudo de si; e eu gostaria de poder lhe dar tudo de mim durante o tempo que nos resta.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O mais cruel dos meses



Contrariando Eliot, aquele Abril não seria o mais cruel dos meses, embora seus primeiros dias me levassem a acreditar no aedo britânico.

A vida, a minha vida, escorria entre o pessimismo e o tédio de ensolaradas frustrações cariocas.

Mas estava marcado para o dia 17 em Porto Alegre o lançamento de meu livro e ao sair do Rio deixei bilhete para a ex-mulher pedindo-lhe que não se entristecesse caso o avião caísse, pois o que eu tinha feito já estava bom para um tipo pra lá de comum.

Em Março, no entanto, estivera em Porto Alegre proferindo palestra num evento literário e aproveitei para fazer contato com velhos amigos e antigos conhecidos. Entre os últimos, uma mulher. Conhecida sim, pois não lembrava sequer seu sobrenome. Foi a última pessoa que contatei, um prosaico telefonema, já no aeroporto minutos antes do embarque de retorno ao Rio.

Disse-lhe que no mês seguinte retornaria a Porto Alegre para o tal lançamento. A conversa foi, como sempre fora, plena de alegria e não fosse a última chamada pelo sistema de som do Salgado Filho, na certa se estenderia. Era a tônica entre nós e duas décadas de distanciamento não modificara em nada.

Parti e sequer a lembrança daquela conversa me acompanhou, mas no dia do lançamento na Livraria Cultura consegui falar-lhe ao telefone, manhã cedo, avisando que aquela era a noite do meu livro.

Marcado para as 19hs, cheguei ao local minutos antes, e logo comecei a assinar os exemplares. Fazia isso quando meus olhos abandonaram a página do livro para se ocuparem da mulher mais elegante daquela noite. De súbito interrompi o que fazia e me dirigi a ela. Um abraço, os convencionais beijinhos e...

-Como você está linda!
-Obrigada (num sorriso inesquecível)
-Você fez plástica?
-Não (repetindo o sorriso)
-Você está casada?
-Separada
-Então, por favor, sente-se ali a minha mesa.

Ela sentou e em meio a uma assinatura e uma foto, trocávamos algumas frases entre goles de vinho.
Seu exemplar, não assinei, disse-lhe que assinaria após o jantar. E assim foi. Juntos permanecemos até as seis da manhã quando embarquei rumo a uma palestra no interior do Estado. Ao voltar ela estava a minha espera na Rodoviária. Ali eu já era outra pessoa.

Dias depois retornava ao Rio, não tardou para ela também ir e no derradeiro dia de maio eu chegava a Porto Alegre para vivermos juntos.

O que me intriga nisso tudo diz respeito àqueles segundos vitais onde abandonei a dedicatória que escrevia para ir recebê-la.

O que senti, naqueles breves instantes, ainda hoje busco entender. Um lapso de tempo onde a mudança de minha vida começava a se encaminhar. Ao mesmo tempo em que hoje me sinto irremediavelmente feliz, também percebo que nada disso poderia ter acontecido. E eu me pergunto; o que seria de mim agora, nesse momento?

Foi ali naquele momento em que a recebi e na troca de olhares e breve diálogo objetivo que tudo se deu. Não, não sei definir o que senti, sei apenas que se tratava de um sentimento único que jamais se repetirá e na falta de talento para buscar definir esse misto de felicidade e medo, me socorro nas suas palavras: “Te adoro, meu poeta!
Desde que entrastes na minha vida, uma sensação estranha me percorre, de que não houve início, mas de que sempre foi, hoje tenho uma sensação de estado de suspensão. Dores ao me afastar. Acho até que não é só saudade é que falta um pedaço.”

Agora, anseio por intermináveis abris a permitir comemorar o que essa mulher me trouxe, vida.